É preciso escrever, porque a escrita, em primeira instância, não tem braços que envolvam o meu sentir até sufocá-lo. Escrever é a liberdade de sentir, em silêncio, o indizível, digerindo pedras, cacos de vidros, ex-retratos, feijoada cotidiana. Pegar emprestadas as palavras que faltam no momento do olhar - o que antecede confissões adiadas sistematicamente -, poder pensar no que há de mais óbvio, naquilo de que fujo. Dissimulo justificar minha existência, dar sentido próspero à vida, preencher espaços, ir para além do que já sei. Tudo pelo Outro. Mas de buscar o não óbvio me faço submersa nos tantos sentidos, desdou minhas mãos das mãos dessa própria essência, quase como quem se perde da mãe e fica ali, parado, sem ao menos saber se realmente se perder da mãe é tão aterrorizante, mas ainda pensando “onde está minha mãe?!”. Impressionante é a obrigatoriedade de estarmos sempre decidindo por alguma coisa, numa onipotência reinventada a cada segundo, falsamente alimentada por parcos acertos e infinitas incertezas. Estamos sempre tendo que decidir se atravessamos a avenida quando o sinal está fechado para os pedestres, se devemos ou não ir ao teatro, se vale a pena dar uma moeda ao transeunte anestesiado, se vale a pena fazer votos, ter crenças, se voltar é o melhor, se retornar, se seguir, se permanecer parado... Tantas decisões e necessidades de preencher e significar me afastam de mim mesma. Tantas eticéteras só me servem, cruamente, para resumir as óperas e corroborar a alienação sórdida e essencial que é estar viva. Estou sempre prestes a decidir, a me culpar e me arrepender pelo decidido: preencho a cabeça com isopor. Constantemente me presto a fazer das decisões uma borracha gigante que me anula de mim, pesando sobre meu confuso “não-saber-ser”, que torna o que sou transparente à rotina, que transforma minhas trilhas em fatos, em constatações, em experiências resignadas de não-escolha e impossíveis alternativas. Calar parece mais escandaloso que gritar ao vento que detesto bolachas velhas, que não suporto os hábitos que me orbitam e me azucrinam, que não sou uma fiel domadora da concret jungle, que na maioria das vezes não tenho força para suportá-la – a faca de abrir picadas carece corte fino, que não é tão grácil a natureza a ser desbravada. O silêncio diante de ser sempre a priori e não saber sê-lo é suicídio rotineiro, sem fala, sem bilhetes nem despedidas. Guardar é indigesto, mas decidir o tempo todo é bulimicamente necessário. Questão de sobrevivência subjetiva. Quase como dizer que o indizível é um mistério que me garante. Ter vocabulários vastos que me explicam e me traduzem é estar perdida, livre, possivelmente só comigo mesma.
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"Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito Ou o crime que a alma lhe pede para fazer."
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"Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito Ou o crime que a alma lhe pede para fazer."
Fernando Pessoa