
Me descompensei. Feito houvesse o vento dado um golpe em minha muleta. Caí no asfalto seco, duro, caí apalermada comigo mesma, do mesmo jeito como vim ao mundo: assustada. Choveu uma cachoeira de verdades, uma-pós-outra, choveram facas afiadas, olhares maldosos, dedos apontados sobre minha cabeça, frases cruas. Olhei atônita para mim mesma, estatelada no subsolo úmido das verdades não-sabidas, boquiaberta, mal conseguindo grunhir aos mosquitos e baratas que se aproveitavam de minha podridão exposta, sem enxergar direito o que foi que me acontecera. Passaram por mim enquanto eu estava na rua e me deram uma rasteira de pé de vento, fui abatida contra o muro, sem ter tempo de me segurar - apenas procurei minha muleta esquerda, que se quebrara sobre as pedras da calçada. Olhei ao redor de mim e lá estava a vida sussurrando que as cousas continuavam iguais. Ninguém percebera a queda, tampouco sentira o golpe.
Era minha a tragédia da tarde. Os carros continuavam atropelando o tempo, o vento continuava refrescando as saias, a mandala de metal pendurada na parede, as plantas gozando no alívio triste do chuvisco de verão. Chorava pela morte do que nem sei o nome. Chorava copiosa, desesperada, agarrada ao concreto, na desesperança. Naquela tarde meu condão estava torto, minha cabeça pendera para trás - meu deus! -, os olhos não eram mais firmes nos propósitos. Tremia o medo de não conseguir me levantar. Havia no ar um clima de desvelo e nudez de mim mesma que me fizeram tropeçar ao tentar erguer o corpo, porque já estava sem uma muleta, porque não sabia caminhar sozinha, porque meus pé de madeira estavam partido. A rua. As casas, as janelas. As pessoas, os cachorros. Estava tudo ali, como sempre esteve. Aqui dentro o condão falhara, no meu engano de ter sido outra até então.
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“Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la –, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me mesmo seja de novo a mentira que vivo.”
(Clarice Lispector)