domingo, 11 de novembro de 2007

Carta a um sir

Todas as manhãs, momentos antes de enviar-te e-mails, penso em escrever poemas para tocar a tua alma com os dedos, penso em escalar degraus que me elevem ao teu coração, ou em um jeito de sorrir que desperte o teu sol. Todas as manhãs eu penso em presentear-te com um enfeite, com um acorde, com estrelas de luz. Mas não sei escrever poemas quando estou crua. Tampouco saberia colher as estrelas pelo chão quando a noite ainda dorme. Não sei falar em liras enquanto a verdade é que um dia todos nós morreremos e antes disso, por várias e várias vezes, todos nós nos equivocaremos acreditando na idéia superficial do "certo-errado", feito fosse um jogo a vida. A verdade, meu bem, é que as decepções com os outros são as nossas conosco, os outros não são nossos, não são nossas decepções, são apenas - apenas mesmo - os outros. Sabes bem que os vazios que se aglutinam nos momentos entrecortados das semanas, a solidão, as expectativas (já tentou tentar respirar embaixo d'água?), as bolhas, as fragilidades, as forças são nossos produtos não-comerciais, que não se trocam, não se devolvem, não são de valor externo. São massas de pensamentos transformados, mastigados, digeridos, fermentados (porque o tempo fermenta, a covardia oxida e nossas limitações são um zinabre implacável às tentativas)... Indigestos pontos finais. Então, separe os teus "entulhos" (sic), porque em breve, quem sabe?, passe o caminhão recolhendo tudo para ser reciclado, reaproveitado ou doado. Deixe-os com cara de coisa nova: são as repetições que os atualizam em nós, mesmo quando temos a impressão de que os entulhos já terem sido recolhidos pelo caminhão. É que às vezes esquecemos - não por acaso - um tapete velho, uma bota furada, a bicicleta com o aro amassado. Se estiver pesado, se houver muitos entulhos, se precisar gente para dividir o peso, ou gente para dizer "vai mais pra esquerda, cuidado com a porta, oops, a quina da mesa, cuidado!" ou "sai, Totó, que vamos passar aí pra retirar as coisas do quartinho de despejo...!", estarei aqui. Sei bem como cansa e como ficam pesadas as caixas de papelão, porque minha mudança e minhas faxinas não terminam jamais. Aliás, sei bem como as caixas que passaram tantos meses fechadas no canto da casa, quando fingíamos que aquilo não ocupava tanto espaço assim, de repente, na mudança, incomodam. Volumes a mais que devemos ou transportar no braço, ou abrir e - apesar do pó - ver se o que há lá dentro pode ou não nos ser útil. E continuo ainda aqui, caso haja muito pó ou caso haja muito peso.
Sua mudança pode demorar dias, meses, anos, assim como as de qualquer pessoa frustrada, mas esperançosa (por que a frustração soa tão mal, se, ela é a constatação do nosso real?). Mas é assim, não é? Porque tu e eu, sabemos, queromos casa nova, com janela grande, cozinha clara, banquinhos de madeira, ar circulante, algumas coisas insuperáveis nas prateleiras (e outras nas caixas, que ninguém é tão perfeito assim), enfeites, cores, espaço para poder empilhar mais caixas de papelão, quando for necessário... E queremos visitas que batam à porta para um café, opiniões sobre o lugar das caixas e sobre o filme do sábado. Quero a tua admiração com um peixe colorido na estante que finalmente terei conseguido arrumar e que consigamos, nós dois, observar a paisagem lá de fora com o vidro fechado, limpo, claro, com transparência. (E se precisar de ajuda para limpar o vidro da tua janela, se precisar de caixas vazias para depositar nelas o que o caminhão recolherá, se precisar.... estarei aqui!)
É isso, sir. Librere espaço... certamente perceberás que ter 17 anos de idade é único, mas é um risco, assim como ter 40 é sereno, mas é igualmente confuso, enfim... porque a verdade é que um dia todos nós morreremos e até o fim dos nossos momentos estaremos nos equivocando ao pensar que a vida é um jogo de "certo-errado".
(E eu estou aqui, sempre! Minhas mãos estão dadas às tuas, meu olhar está pousado sobre o teu coração, o meu coração está repousando sobre o teu ombro e vejo, por mais estranho que pareça, a beleza de sermos assim tão iguais ao que guardamos ad eternum em certas caixas.)
Sir, amo-te. Não sou boa em dizer as coisas, mas você sabe que estou contigo... que ontem gostaria que tê-lo por perto para um cafuné até que dormisses, para um café de bom dia, para silêncios que falam, para olhares que sussurram...
Sabes do que está falando aí contigo mesmo, teus ouvidos e teu coração enorme de almofada que tanto admiro (e outras tantas pessoas também admiram)... Te cuides! E, de novo, caso o pó seja muito ou caso haja muito peso, estou aqui do teu lado!
Beijos, muitos beijos, com sabor de liberdade e com muito amor.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Condão torto

Me descompensei. Feito houvesse o vento dado um golpe em minha muleta. Caí no asfalto seco, duro, caí apalermada comigo mesma, do mesmo jeito como vim ao mundo: assustada. Choveu uma cachoeira de verdades, uma-pós-outra, choveram facas afiadas, olhares maldosos, dedos apontados sobre minha cabeça, frases cruas. Olhei atônita para mim mesma, estatelada no subsolo úmido das verdades não-sabidas, boquiaberta, mal conseguindo grunhir aos mosquitos e baratas que se aproveitavam de minha podridão exposta, sem enxergar direito o que foi que me acontecera. Passaram por mim enquanto eu estava na rua e me deram uma rasteira de pé de vento, fui abatida contra o muro, sem ter tempo de me segurar - apenas procurei minha muleta esquerda, que se quebrara sobre as pedras da calçada. Olhei ao redor de mim e lá estava a vida sussurrando que as cousas continuavam iguais. Ninguém percebera a queda, tampouco sentira o golpe. Era minha a tragédia da tarde. Os carros continuavam atropelando o tempo, o vento continuava refrescando as saias, a mandala de metal pendurada na parede, as plantas gozando no alívio triste do chuvisco de verão. Chorava pela morte do que nem sei o nome. Chorava copiosa, desesperada, agarrada ao concreto, na desesperança. Naquela tarde meu condão estava torto, minha cabeça pendera para trás - meu deus! -, os olhos não eram mais firmes nos propósitos. Tremia o medo de não conseguir me levantar. Havia no ar um clima de desvelo e nudez de mim mesma que me fizeram tropeçar ao tentar erguer o corpo, porque já estava sem uma muleta, porque não sabia caminhar sozinha, porque meus pé de madeira estavam partido. A rua. As casas, as janelas. As pessoas, os cachorros. Estava tudo ali, como sempre esteve. Aqui dentro o condão falhara, no meu engano de ter sido outra até então.

*
“Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la –, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me mesmo seja de novo a mentira que vivo.”
(Clarice Lispector)

domingo, 16 de setembro de 2007

É preciso escrever, porque a escrita, em primeira instância, não tem braços que envolvam o meu sentir até sufocá-lo. Escrever é a liberdade de sentir, em silêncio, o indizível, digerindo pedras, cacos de vidros, ex-retratos, feijoada cotidiana. Pegar emprestadas as palavras que faltam no momento do olhar - o que antecede confissões adiadas sistematicamente -, poder pensar no que há de mais óbvio, naquilo de que fujo. Dissimulo justificar minha existência, dar sentido próspero à vida, preencher espaços, ir para além do que já sei. Tudo pelo Outro. Mas de buscar o não óbvio me faço submersa nos tantos sentidos, desdou minhas mãos das mãos dessa própria essência, quase como quem se perde da mãe e fica ali, parado, sem ao menos saber se realmente se perder da mãe é tão aterrorizante, mas ainda pensando “onde está minha mãe?!”. Impressionante é a obrigatoriedade de estarmos sempre decidindo por alguma coisa, numa onipotência reinventada a cada segundo, falsamente alimentada por parcos acertos e infinitas incertezas. Estamos sempre tendo que decidir se atravessamos a avenida quando o sinal está fechado para os pedestres, se devemos ou não ir ao teatro, se vale a pena dar uma moeda ao transeunte anestesiado, se vale a pena fazer votos, ter crenças, se voltar é o melhor, se retornar, se seguir, se permanecer parado... Tantas decisões e necessidades de preencher e significar me afastam de mim mesma. Tantas eticéteras só me servem, cruamente, para resumir as óperas e corroborar a alienação sórdida e essencial que é estar viva. Estou sempre prestes a decidir, a me culpar e me arrepender pelo decidido: preencho a cabeça com isopor. Constantemente me presto a fazer das decisões uma borracha gigante que me anula de mim, pesando sobre meu confuso “não-saber-ser”, que torna o que sou transparente à rotina, que transforma minhas trilhas em fatos, em constatações, em experiências resignadas de não-escolha e impossíveis alternativas. Calar parece mais escandaloso que gritar ao vento que detesto bolachas velhas, que não suporto os hábitos que me orbitam e me azucrinam, que não sou uma fiel domadora da concret jungle, que na maioria das vezes não tenho força para suportá-la – a faca de abrir picadas carece corte fino, que não é tão grácil a natureza a ser desbravada. O silêncio diante de ser sempre a priori e não saber sê-lo é suicídio rotineiro, sem fala, sem bilhetes nem despedidas. Guardar é indigesto, mas decidir o tempo todo é bulimicamente necessário. Questão de sobrevivência subjetiva. Quase como dizer que o indizível é um mistério que me garante. Ter vocabulários vastos que me explicam e me traduzem é estar perdida, livre, possivelmente só comigo mesma.
*
"Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito Ou o crime que a alma lhe pede para fazer."
Fernando Pessoa

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Algemas Orgânicas

Não fosse assim visceral seria branco, leitoso
Feito espuma fazendo barulho
As bolhas espocando dentro do liquidificador logo quando abro a tampa para ver se a consistência ficou do jeito que eu queria.
E nunca fica, sabe?
Desde que percebi que sou instrumento ao invés de desejo,
Transformando o que sinto em conformação forçada: é a força do tempo agindo sobre meu parco querer.
Não nos cabem pratos limpos, porque mentira de mãe é verdade cristalizada pelo passado, não se fala, é tabu inventado.
E eu finjo que não percebo
Finjo que não penso
Me mostro boba diante da sua palpável fiúza.
[mal se lembra que também sou Fiuza]
Pathos é pano de fundo
Parede branca, sem calor, uma descor, me dessignificando.
A desimportância de mim tange o seu triunfo
- e agora meus olhos estatelados sobre nosso passado te trazem o medo de uma máscara ter-se caído
[Agora o tempo é meu]
Volito entre o desaparecimento e uma resignação dissimulada
(e aprendida)
Sou perita rota do vazio
Sou um espelho alquebrado pelo tempo.
Adultesço longe, juntando os cacos de mim.
*
No music

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Twist-entrecortes


Dancemos, meu caro, que essa fortuna gira frenética contra o tempo. Dancemos enquanto há calor para nos incendiarmos feito tochas de vontade, que as cores dessa nova estação nos apalpam à procura de mais uma marca que se cole, perene, nessa página quase em branco. Veja que a condição sine qua non desse outro capítulo exclui falsas invenções, que já tombamos todo o concreto armado que sustentava nosso mundo de algodão doce, sem saborearmos as pedras que hoje nos aproximam do óbvio – a sublimação das tempestades. Enquanto as noites se tingem de breu e ausência nos preparamos para as realidades doces que nos alimentam a alma – e com elas há os nossos breves parágrafos, na frugalidade da semana, no vapor dos pequenos fragmentos de nós.
Essa morfina toda anestesia as previsões, combustível injetado no coração, semi-explosões íntimas de agrado, inclinação e imoralidade mútua. Somos dois esfomeados que se alimentam da lascívia e da solidão, atormentando-se a si mesmos para repetir no próximo encontro a ousadia de se amar no outro, porque somos espelhos que se dão as mãos.

*
"O que não se compreende não se possui"
(Goethe)
*
Morphine: Yes

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Um certo mal-estar na civilização





The anchor song
(björk)

I live by the ocean

and during the night

underneath all currents

and this is where I'm staying

this is my home.
*
Quando penso "meu deus, obrigada por esta vida que me destes" um sentimento de culpa é analógico ao meu contentamento. Meu mal-estar nesta civilização de merda me dignifica como pessoa, como "sujeito" desse cenário torto de desordem e indefinições. Estão os conceitos ultrapassados, porque mal resistem à passagem de tempo algum. O que é hoje pode não ser daqui a poucas horas e todos vão ensaiando suas capacidades de serem blasés, como que observando um belo jardim florido na saleta de espera de um consultório psiquiátrico qualquer. É este o mundo em que vivemos e que nos foi construído, a contragosto da sorte, com concreto de segunda linha. E é o resultado de construções futuras que, pelas previsões mais otimistas, tendem a desmoronar feito castelo de areia atingido pela onda. E que onda, quando penso que minha vida é ótima sinto que deveria estar sofrendo de alguma forma, para estar sendo compensada pelas benesses que a vida me traz. E nesse ciclo infinito de culpabilidade-remorso-enigma vamos passando concreto em tudo, nas árvores, nos bancos de madeira das praças, no céu da cidade, nos nossos ideais.
Quando é manhã, quando ainda é possível sentir a brisa fresca dos bocejos preguiçosos do dia, abro o jornal, sento-me em uma das cadeiras do quintal, leio as notícias, me isolo mais ainda da realidade. Discorro pelos fatos rotineiros e pelos fatos absurdos da cidade grande como quem também aprecia o tal jardim. A realidade está lá, ali, aqui, e não participo, apenas observo. Estou fora do planeta, fora das notícias vorazes da falida economia capitalista-patética, fora da política garbosa e melequenta, estou out das festinhas badaladas do hype. Sabe por quê? Porque não suporto mais ter de lidar com essa culpa que todos carregamos, carimbadas em nossas bundas pelos tapinhas do médico que provoca o choro, essa culpa devassa que se arreganha em dentes ferozes para nós e nos fazem, de fato, chorar. A culpa pela obrigação de ter que consertar aquilo que não fomos nós quem estragamos, a culpa pela obrigação por termos que ser o futuro, o máximo, o sucesso, o esperado, "o", "o", "o"... lamentável. Mas nada que atrapalhe os pequenos prazeres da vida de cada ser humano, como o jornal pela manhã debaixo do sol e da brisa fresca que corre louca pela casa - longe de mim achar que não sou merecedora disso e de outros bel-prazeres do dia-a-dia, pois sei bem que isso terá um fim, pela obrigação de ser uma cidadã, filha, estudante, profissional, mulher, ser votante, contribuinte..
De qualquer forma, amanhã o jornal estará lá, o sol, o céu, a brisa. Eu estarei lendo, observando, pensando, digerindo o mundo, as notícias, essa nossa apatia inata. Eis a (pós)modernidade.
*
Refiro-me a este senhor que muito pensou à frente da modernidade de sua época para formular as mais preciosas considerações a respeito do ser humano e sua maneira incrível de atuar no mundo

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Inverno Noir




Recebe minha vontade para uma visita. Oferece café quente ao meu coração que, congelado pela crudeza do amor diluído, faz celeuma pelo corpo. E se tremem as mãos é porque o frio que faz lá fora me queima, tímida. Sorriso iluminado, subo a rua pesando a dúvida e a súbita volta ao redor de mim mesma. Tudo tem se transmutado: os ventos em sussurros gelados, o inverno em pequenos sonhos, os antigos beijos em novos sorrisos. Tem mudado a temperatura, a direção desses ventos que me jogam para o alto. Feito tapete, volito suave entre a saudade quieta e a novidade urgente.
Fazia tempo que não me sentia assim. Talvez nunca houvesse, de fato.
*
É tempo de espelhos.
*
Disritmia - Zeca Baleiro